terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

De boteco, uma delas

Publicada originalmente nos Bolonistas.

De uma série que gosto de fazer: homenagens aos times e torcedores que rondam por aí.

Esta é a primeira da série, que chamei de "Bolonistas e outras histórias".

Gosto muito desta série de textos...

Xodó.

Espero que gostem.

http://osbolonistas.zip.net/arch2007-03-01_2007-03-31.html#2007_03-15_14_24_15-2402205-25
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Bolonistas que reconhecem uma verdadeira paixão ...


Aquela irritação do domingo, noite. Acrescida de uma legítima dor de estômago, em razão daquelas coisas que só acontecem com o Clube Náutico, o Timbú. Era inacreditável que o alvirrubro tivesse perdido, nos Aflitos, para o Paulista de Jaboatão dos Guararapes. O Paulista já não tinha chance de mais nada. Só de atrapalhar...



Ninguém se chama Euzébio impunemente. Enquanto o estômago revirava, a certeza de que os colegas de trabalho iriam acabar com ele na segunda braba, o telefone: “Oi... tudo bem?” A voz rouca, que ele adorava e fazia o estômago revirar, e muito. “Tudo, e você?”. “Quarta feira estou aí. Vamos nos encontrar?”. Ele quase perde a fala, mas tomou coragem, sabe-se lá de onde, e desferiu: “Jantar aqui em casa. Ok?”. O ar pareceu inexistir durante segundos. “Ok. Beijo. Te encontro na quarta.” A televisão ligada já quase não importunava o ambiente.


As mesas redondas davam grande destaque ao feito do Náutico. Precisando da vitória para se classificar para o quadrangular final, naqueles esdrúxulos regulamentos de campeonato regional, perde. E, mesmo com a melhor campanha nos três turnos, o maior número de vitórias, o melhor saldo, o melhor ataque e o artilheiro do campeonato, o Náutico corria sérios riscos de não se classificar para o quadrangular.


Era difícil aceitar o regulamento. Antes dela, o estômago revirara, a raiva cintilara. O Sport vencera o primeiro turno. O Santa, o segundo. Em ambos os turnos o Náutico ficara em segundo lugar. Naquelas coisas que ninguém explica, o regulamento indicava um terceiro turno: Se Sport ou Santa ganhassem, uma final entre ambos, com vantagem para o ganhador do terceiro turno. Se outro time faturasse o inexplicável turno terceiro, um quadrangular envolvendo os três campeões mais o time com maior número de pontos. Ou seja, um regulamento besta. E o pior, o Náutico já não tinha mais chances de ganhar o terceiro turno e dependeria do simpático Central de Caruaru. Sim, o Central tinha feito um terceiro turno irrepreensível. Mas, precisaria ganhar do Sport, em plena Ilha do Retiro, na quarta feira à noite, para tirar do rubro-negro o título do extraterreno terceiro turno e a vantagem nas finalíssimas.


Euzébio era Euzébio por causa do Euzébio. Isso mesmo. Pai fanático por futebol. Mãe portuguesa. Filho, com nome de craque. Euzébio nasceu Portuguesa, de Santos. Mas se mudou para Recife e adotou o Náutico. E se perdeu. Nos insondáveis caminhos que nos fazem torcedores de um clube de futebol, foi o alvirrubro que colocou arreio. Fanático.


Mas ele tinha aquela paixão de desvario por ela. E de uns tempos para cá ficavam juntos, namoravam um pouco. Uma casquinha ali e outra acolá. Mas ela mudara da Recife para São Paulo. E a paixão ficou assim, suspensa. Era a primeira vez em meses que ela voltaria para a Recife. Em plena quarta feira. Euzébio, quase sem querer: “Ainda bem que o Náutico não tem mais chances... quarta feira desisto do futebol!!!” E sorriu.


Foi mais fácil agüentar o resto do domingo. A segunda feira, foi plácida. Todos admiraram a sobriedade do rapaz. A altivez. Agüentou o sarro de forma sublime, quase inumana. Mas na terça feira avisou o chefe que usaria o banco de horas, que não trabalharia na quarta, na quinta e também na sexta. “Vou espairecer a cabeça.” Mentira. Mas todos acreditaram, era o Náutico.


Fez supermercado. Comprou vinho branco, “chardonay” argentino. Duas garrafas. E ousou, um tinto malbec para depois. Peixe. Iria cozinhar. Legumes frescos, tomates. Deixou a cebola de lado. Uns figos para a sobremesa. Estava deliciado. Só faltava ela chegar naquele “tubinho preto básico” que ele simplesmente considerava a maior demonstração da boa costura mundial. Em casa preparou terreno. Limpou as coisas, deixou propositalmente coisas desarrumadas. Um livro marcado na página predileta displicentemente na mesa de centro. Era o local perfeito. Tirou o pôster do Timbu da sala.


Ousou, ainda mais. Passou à tarde entre a cozinha e o computador. Gravou um “cd” para ocasião. Cuidadoso. Marvin Gaye e a beleza da “What´s going on”. Barry White, umas duas ou três, bem escolhidas e sem exageros. Uma Nina Simone aqui, um John Coocker ali. E uma do Rei, “Outra Vez”. Seu estado de espírito era absurdamente leve e obstinado. Era ela. Finalmente, depois de meses.


Noite chegando. Tudo pronto. O celular avisa que ela está chegando. Alguns amigos desejam boa sorte ao Central de Caruaru, numa evidente provocação gratuita. Ele coloca o aparelho no silencioso. Não quer nada para atrapalhar. Nem o Central. Nem o Náutico. Muito menos o Sport Club do Recife.


A campainha. Ele maravilhado: Era o tubinho preto. Para quem morava na distante São Paulo estava inusualmente morena. Com marcas. Tivera a leve sensação de levitar. A noite prometia tudo. E mais um pouco.


Não vou ficar aqui relatando os detalhes do namoro. Não vou definir o que aconteceu ao som de Barry. O fato é que lá pelas tantas ele foi surpreendido pelo celular, que embora no silencioso, emanava uma luz que indicava a certeza de recados deixados. Ficou curioso. E errou, soberbamente, uma mensagem de texto: “O Central acaba de fazer o quinto gol”. Foi como um soco. Deixou o bichicho mordaz da curiosidade.


Arrumou uma desculpa e foi ao banheiro. Um radinho de pilha. Ligou, sussurros. Era verdade. O Central metera 5x2 no Sport. Era campeão do turno. O Náutico, com melhor campanha, faria o quadrangular. Ouvia-se a entrevista dos jogadores, eufóricos: “Agora é com a gente!”. Saiu do banheiro trajando a camisa do Náutico, uniforme completo. Ela já tinha entendido tudo, desde a escapadela para o banheiro. Tinha ido embora. E deixara um bilhete na mesa: “Em SP, me ligue.” Nunca mais a viu.

2007. março, 15.

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